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8.12.04

Crítica de uma razão impura

Crítica de uma razão impura

"Euskera! Bizikidetza eta Bakearen Pedagogia Euskal Herrian gaur egun!" (Nossas língua e cultura! Educar a todos é fundamental para a convivência e a paz no País Basco!)

Joaquín Beriguenstain (1879-1914)


Joaquín Beriguenstain é, antes de tudo, um basco. Apesar de se saber muito mais sobre ele por conta da tradicionalmente oral cultura daquela região, abrangida por Espanha e França, poucos escritores podem se dizer capazes de utilizar regionalismos para simbolizar dramas tão universais quanto fez "El Txaxi", em seus 35 anos de vida.

Desde o início da disposição em se consolidar uma identidade nacional basca, esse paladino da palavra não indo-européia peregrinou como um mouro para difundir o idioma e a cultura "euskera" nas regiões mais inóspitas da Europa e do Norte da África.

Relegado ao esquecimento, bem como Euskadera Ferrero (1693-1745) e Henri Batasuna (1843-1893), esse homem esguio, fino no trato, segundo contou um parente espanhol de minha avó Lazinha, e de feições levemente nórdicas ajudou a minimizar a secular influência árabe no norte da Espanha. Ele assim fez em sua querida e católica Navarra, apesar de tudo indicar que ele tenha nascido em Sán Sebastian, além de ter sido o maior pregador da independência de sua província natal.

Para isso, o literato, que passara sua juventude inclinado a fazer o curso de Direito, mas desistiu por desapego às leis e amor à Justiça, não media esforços. Filho de um importante empresário da indústria de laticínios, fazia questão, desde seus 22 anos, de escrever e imprimir seus livros em basco e iorubá, com o principio que guiou sua existência: educar os mais fragilizados.

Conta-se que Beriguenstain seguiu da Argélia ao então Congo Belga, hoje Congo-Brazzaville, para distribuir seus textos, lê-los em praça pública e tentar incitar a população local a se rebelar contra a exploração européia. Foi assim que surgiu seu livro mais conhecido, "You May", concebido como um escárnio da língua inglesa e cuja data da primeira impressão se desconhece. Segundo minha avó, um conto traduzido do teatrólogo ucraniano Anton Tchekov (1860-1904) vinha junto do livro de Beriguenstain.

Não há confirmação oficial de que nada disso tenha acontecido, até porque a história de Beriguenstain sobrevive no boca-a-boca, e não em relatos de livros e grandes documentos. Beriguestain falava com desenvoltura, ao que parece, quatro idiomas: espanhol, inglês, basco e iorubá.

Isso sucitou a interpretação da zombaria com a anglofonia no título de "You May", que poderia significar "Tu maio", e não o aparente "Tu podes", uma vez que os africanos justificavam a maior tendência dos colonizadores à violência no quinto mês do ano em virtude da posição do sol.

Existe margem para explicações ainda mais inquietantes sobre o sentido do título. Fernando Vives, um biólogo que fala iorubá, me informou que "You May" pode se tratar de uma palavra sibilante no idioma africano com "Iyê", pronunciada com a extensão da última letra.

O léxico significa "mãe" - de onde sai a vida - e ainda é próxima de uma outra palavra do iorubá cuja tradução é algo como "prisão da qual se pode sair uma ou duas vezes, mas nunca uma terceira". Com grande sensibilidade, segundo o relato de um tio-avô, Beriguenstain inverte a relação colonialista, o que será retomado pelo escritor árabe Tayeb Salih em sua obra "Tempo de Migrar para o Norte".

O colonizado passa a ser o colonizador, sem a mesma violência dos europeus, mas sim com amor, educação, compreensão e aceitação do outro. Jeffrey Marshall, um soldado do Império Britânico à caminho da Nigéria, desiste de seu idioma por amor a uma princesa tribal africana, a bela Kalijah, que passava por Marrocos depois de uma viagem à Espanha.

O militar, que avistara a bela africana - chamada de "A Princesa Pobre", sem sequer uma carruagem digna de seu título de nobreza - em uma barcaça atravessando o Estreito de Gibraltar, a encontra em Casablanca e, fascinado, se dispõe a ser escravizado por Kalijah. A negra aceita Marshall, contanto que ele aprenda sua língua.

Depois que isso acontece e o inglês busca iniciar uma relação física com Kalijah, mas ela impõe que sua cultura também deve ser aprendida e estudada pelo europeu. Marshall hesita, reclama e aceita o desafio. Até que Kalijah, depois de o inglês se humilhar e chorar diante dela pela primeira vez, aceita o homem e seu renascimento como um africano. Ela se torna a mãe dele - a sua amada Iyê.

Do lado de baixo do Equador africano, o livro deixou marcas indeléveis, também por ter sido o ápice de uma carreira que acabou poucos anos depois com a morte do escritor, por quem houve choro e rituais que uniram a todos - hutus, tutis, árabes e negróides.

Mas se Beriguenstain teve de desencarnar, o mesmo, no entanto, não aconteceu com o desejo pelo pan-africanismo/pan-basquismo, ainda resistente e ativo com as nuances humanistas e iluministas trazidas por um dos maiores representantes de sua cultura e de seu tempo.