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10.12.05

A Quatro Mãos

“Jejichz obsah je chranen autorskym zakonem. Prepis, sirení, ci dalsí zprístupnování tohoto obsahu ci jeho cásti verejnosti.”

“Hoje os obstáculos são muitos para a moral do homem. Antecipadamente, sem pensar, correu nua e deitou-se na cama onde lia o francês esperto.” (Emil e Milos Koubek)



A escrita já existe há centenas e centenas de anos. Mas apenas em meados dos recentes anos 1960 o mundo pôde conhecer um trabalho tão brilhante quanto o dos irmãos tchecos Emil (1943-1974) e Milos Koubek (1945-1990). Pioneiros, os jovens da região de Pardubice, no coração do país então comunista, revolucionaram os padrões da literatura ocidental ao criarem um novo estilo a quatro mãos: em suas três obras – ali disseram tudo que havia para ser dito – cada um escreveu 866 páginas. Alternadamente.

Mentirá aquele que disser que os Koubek se amavam e se entendiam perfeitamente. Somente dessa maneira, julgariam os parvos, poderiam eles dois encontrar tamanha simbiose de pensamento e concatenação de idéias aparentemente desconexas. Mas a verdade é que escreviam conjuntamente, e não juntos. Odiavam-se. A propensão à genialidade compensava. A um bastava ler a página anterior e a história seguia, sempre com espontaneidade e fluidez. Não queria um saber o que o outro pensava, se havia algo planejado para este ou aquele personagem. O que os movia era o impulso de continuar.

Foi pouco depois de Emil deixar o curso de geologia da Universidade Nacional e de Milos entrar no primeiro ano do segundo grau – fora acometido por um distúrbio de atenção apenas minimizado com terapia ocupacional – que veio o primeiro livro: “As Antípodas de Richard Wagner” (1964). Aquilo que tinha começado dois anos antes como uma brincadeira de Emil para estragar um conto do irmão, iniciado e esquecido durante uma passagem pelo banheiro, transformara-se na pedra fundadora de uma nova literatura.

Os oito personagens da narrativa - Katrina, Dario, Vaclav, Tatyana, Franz, Heine, Johannes e Madeleine - se revezam nas páginas umas vezes pelas mãos de Emil e outras, por meio de Milos. As idéias tinham seu eixo sempre sob uma intrincada cadeia lógica hegeliana, com foco na estética gótica, nas perspectivas da televisão tcheca sob julgo comunista, na música clássica e nas memórias de Albert Speer, arquiteto da Alemanha nazista. Tantas informações sem a perda da espinha dorsal narrativa – a humanidade e a universalidade são o mote -- fizeram da obra um sucesso imediato na academia tcheco-eslovaca.

Além da densidade intelectual, fruto de muitas tardes na biblioteca de Kravonitzke, atraiu à intelligenzia do país comunista a habilidade dos irmãos de escrever alternadamente, desdobrando uma história em várias outras. Após publicada a primeira obra, Emil e Milos já eram conhecidos como “Os irmãos Scheherazade”, em uma referência à contadora de histórias das Mil e Uma Noites. A vantagem sobre a mulher, comentava-se, era o ímpio revezamento dos Koubek ao contar histórias. Sem perder o foco.

A fama dos contadores de história se confirmou no trabalho seguinte, “Como Tergiversar com o Pêndulo – a Insubordinação do Marechal Tito” (1965), na qual aparecem 33 personagens de cada um dos autores, um representando cada ano do século até então. Emil e Milos dissecam as Guerras Mundiais, os países não-alinhados às superpotências, a filosofia de Merleau-Ponty e Sartre, os pergaminhos, os tecidos chineses, os tapetes persas, as execuções na Revolução Francesa, o surgimento do cinema e a popularização da mirra. O texto foi aclamado rapidamente pela crítica cirílica, como não poderia ter sido diferente, apesar da limitada repercussão da mídia ocidentalóide.

A segunda obra dos Koubek, no entanto, expôs de forma indelével as divergências entre os dois irmãos, as mesmas que os levariam a encerrar os trabalhos conjuntos poucos anos depois. Emil defendia a organização social que levaria à Primavera de Praga. Já Milos advogava em favor da repressão dos direitos básicos dos tcheco-eslovacos pelos soviéticos, representantes do proletariado. O mais velho encantava-se com o balé. O mais jovem preferia a imprensa. O primeiro era fã de Beatles, e o outro só ouvia The Byrds. Sentiam que eram inconciliáveis, o afastamento definitivo se aproximava. Mas avaliavam que o trabalho ainda não havia sido concluído. Não tinham escrito nada que se pretendesse universal.

Foi esse sentimento que os moveu a escrever seu livro definitivo. O clássico “Deus, o Tempo e o Que Tiver Sobrado da Invasão dos Bárbaros” (1968) respondia a tudo que poderia ser perguntado com a história de 69 personagens, número que representa o equilíbrio entre yin e yang da simbologia coreana. De desafios da tecnologia, passando pela numismática, desembocando na existência de outros universos, Emil e Milos mostraram ao mundo que sua lógica surtia efeito e que já não havia nada a perguntar nem a responder.

(a continuar com resenha de “Deus, o Tempo e o Que Tiver Sobrado da Invasão dos Bárbaros”)